Na 1ª Vara do Trabalho de Uberlândia foi submetida à apreciação do
juiz substituto Marcel Lopes Machado uma ação anulatória ajuizada por
uma grande empresa de serviços de distribuição em face da União. A
empresa pediu a nulidade do Auto de Infração fundado no artigo 74,
parágrafo 3º, da CLT. Este dispositivo prevê que se o trabalho for
executado fora do estabelecimento, o horário dos empregados constará,
explicitamente, de ficha ou papeleta em seu poder. Após analisar
minuciosamente diversos aspectos envolvendo o tema, o magistrado deu
razão à empresa.
Conforme observou na sentença, à época da
inspeção e fiscalização havia controvérsia sobre a matéria, diante das
disposições dos artigos 62, inciso I e 74, parágrafo 3º, da CLT,
consideradas antagônicas pelo juiz. Enquanto o primeiro exclui do regime
geral de duração do trabalho os empregados que exercem atividade
externa incompatível com a fixação do horário de trabalho, o segundo
determina que o horário de trabalho realizado fora do estabelecimento
conste de ficha ou papeleta.
De acordo com o julgador, a
controvérsia deixou de existir a partir da promulgação da Lei
12.619/2012, que dispõe sobre o exercício da profissão de motorista.
Especificamente à categoria profissional diferenciada dos motoristas
externos (carreteiros, caminhoneiros, transportadores rodoviários),
diante do que preveem os seus artigos 235-C a 235-F. Para esclarecer: o
artigo 235-C reza que a jornada diária de trabalho do motorista
profissional será a estabelecida na Constituição Federal ou mediante
instrumentos de acordos ou convenção coletiva de trabalho. Por sua vez, o
artigo 235-F estabelece que convenção e acordo coletivo poderão prever
jornada especial de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso para o
trabalho do motorista, em razão da especificidade do transporte, de
sazonalidade ou de característica que o justifique.
Todavia, com
base no princípio da irretroatividade da Lei e sua consequente segurança
jurídica, o juiz sentenciante entendeu que as disposições de controle
de jornada definidas nos artigos 235-C a 235-F da Lei 12.619/2012 não se
aplicam às situações jurídicas já consolidadas (ato jurídico perfeito)
anteriormente à sua vigência.
Segundo esclareceu o juiz, à época
do auto de infração, a reclamada possuía norma coletiva (CCT) com
cláusula expressa de inexistência de controle de jornada, diante da
previsão do artigo 62 da CLT. Para ele, trata-se de norma decorre da
autonomia privada coletiva, que tem origem e validade na negociação
entre as entidades sindicais, com a exigência de prévia aprovação dos
trabalhadores em assembleia específica, no exercício de sua liberdade e
autonomia na organização. Ele lembrou que há autorização constitucional e
legal para negociação de jornada.
Partindo de uma análise
integral do instrumento normativo (teoria do conglobamento), o
magistrado concluiu que não houve renúncia unilateral. Para ele, ficou
claro que houve efetiva transação, mediante concessões recíprocas,
diante da existência de inúmeras outras cláusulas e condições sociais
instituídas a favor da categoria profissional.
Destacou ainda o
magistrado que, à época da negociação sobre o trabalho externo, não
havia que se falar em direito vinculado à norma de ordem pública,
cogente e imperativa. Mesmo porque, como apontou, há norma individual e
específica no âmbito da CLT que permite justamente a negociação sobre o
tempo à disposição do empregador (artigo 4º da CLT). A própria CLT,
acrescentou, reconhece a sua validade e eficácia (artigo 623), já que
não trata e não se confunde com matéria relativa à política
governamental econômica/financeira de salários, única expressamente
prevista e consignada como passível de nulidade e, portanto, que não se
sujeita à negociação direta das partes coletivas, diante de vedação de
norma de ordem pública e cogente expressa.
E mais: a própria
Constituição autoriza a transação sobre redução salarial por negociação
coletiva (artigo 7º, inciso VI) e sobre a extensão de jornada em turno
ininterruptos de revezamento (artigo 7º, XIV e Súmula 423/TST),
condições jurídicas consideradas desfavoráveis aos trabalhadores. "É
da essência do Direito do Trabalho previsto no art. 8º/CR, que a
negociação coletiva (que, regra geral, tem sido analisada pelo paradigma
e prisma (talvez equivocado) da tutela individual e seus princípios
básicos da proteção, norma mais favorável, condição mais benéfica,
indisponibilidade/irrenunciabilidade e continuidade sobre cláusula
individualmente considerada) é o produto final, a consequência, o efeito
de todo um sistema jurídico para criar, desenvolver e fomentar a vida, a
organização, a gestão e a independência coletiva/sindical pelos
próprios trabalhadores, enquanto categoria organizada para autotutela de
seus interesses e direitos¿, registrou na sentença.
De acordo
com o juiz sentenciante, a própria Constituição instituiu condições e
garantias prévias que asseguram às entidades sindicais autonomia para
realizar sua finalidade social e atuar na defesa dos interesses da
categoria (art. 8º, incisos III e VI) segundo suas demandas e
necessidades reais e específicas como: a garantia da prévia organização
sindical livre, não intervenção estatal, sustentabilidade econômica
compulsória, liberdade individual de filiação ou não filiação, efetiva
proteção no emprego para exercício do mandato sindical em prol da
categoria. Para o julgador, há que se reconhecer a validade do que se
negociou a favor da categoria econômica, sob pena de prevalência de
interesses meramente individuais em detrimento da ordem pública e
coletiva do trabalho.
Ainda segundo o juiz, a se invalidar o ato
jurídico que é fruto de instrumento bilateral nascido da negociação
coletiva, a conclusão lógica seria de que o sindicato profissional e os
próprios trabalhadores (diante da exigência de assembleia geral), são
co-autores na prática deste suposto ilícito trabalhista, e
corresponsáveis pela suposta reparação do dano inclusive, na pretensão
de execução fiscal da União. Nessa linha de raciocínio, considerou que
uma tutela jurisdicional que não reconhece a validade social da
autonomia privada coletiva acaba por não permitir um efetivo crescimento
e amadurecimento das entidades sindicais profissionais na efetiva
tutela coletiva em favor de suas categorias profissionais.
"É tempo de crescer, é tempo de florescer, é tempo de ser responsável pelos próprios atos",
foi como terminou a sentença, para declarar a insubsistência do Auto de
Infração fundado no artigo 74, parágrafo 3º da CLT, e, período anterior
à vigência da Lei 12.619/2012, diante da previsão normativa da matéria,
art. 11, IV da Lei 10.593/2002. Na decisão foi confirmada a antecipação
dos efeitos de tutela quanto à suspensão liminar da exigibilidade
tributária e inscrição no CADIN (artigos 151, inciso I e 206 do CTN e
7º, I da Lei 10.522/2002). Houve recurso, mas o TRT de Minas confirmou a
decisão.
Fonte: TRT/MG